Essas questões foram tema de uma pesquisa realizada pela WIEGO em 2022–2023, desenvolvida em parceria com a Universidade de Sheffield. A pesquisa nacional no Brasil foi realizada em resposta direta à necessidade de saber mais sobre mudanças climáticas que emergiu de um processo de planejamento participativo do grupo de catadoras “As Bonitas do MNCR”. Nessa pesquisa, 91% dos respondentes apontaram que as mudanças climáticas já estavam afetando suas vidas e seu trabalho. Mal sabíamos, ao lançar a pesquisa, que a realidade da emergência climática ganharia contornos dramáticos com as enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. No marco de 1 ano dessa tragédia, WIEGO e o MNCR refletem sobre o ocorrido a partir dos olhares dos catadore-as de recicláveis.
A enchente foi considerada a maior da história do estado, atingindo 478 municípios, e com um número de 2.398.255 pessoas afetadas e 183 óbitos confirmados. Como destacado por Neice Muller Xavier Faria em artigo de 2025, publicado no periódico Revista Brasileira de Saúde Ocupacional - RBSO, os vastos impactos decorrentes deste evento climático, devem perdurar por longo prazo, provocando sofrimentos aos trabalhadores de vários setores e sobrecarregando estruturas e servidores públicos.
As mudanças climáticas têm contribuído para o aumento da frequência das inundações, que vêm se tornando cada vez mais intensas. As inundações aumentam o risco de doenças diarreicas, como o cólera, causadas pela água contaminada, além de lesões por traumas. A perda de vidas e materiais também prejudicam psicológica e economicamente os afetados. A negligência das administrações públicas em se planejar para eventos extremos, desenvolvendo estratégias adaptativas que permitam aumentar a resiliência urbana, deixa os cidadãos e, em especial, as populações em situação de vulnerabilidade, desprotegidos.
É crucial destacar os efeitos devastadores sobre os catadore-as
Os trabalhadores da economia informal foram seriamente afetados, entre eles os catadore-as de recicláveis. Em balanço feito logo após a tragédia por um representante do Movimento Nacional de Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), seis das 13 cooperativas de catadores de Porto Alegre foram completamente submersas, com 400 pessoas diretamente prejudicadas pela inundação. Já no município de Canoas, outras seis cooperativas foram inundadas e 140 trabalhadores foram diretamente atingidos. Em outra cidade, São Leopoldo, foram cinco unidades de reciclagem impactadas e 75 pessoas afetadas. Os espaços de trabalho dos catadore-as das cidades de Novo Hamburgo e Guaíba também foram atingidos. Em Porto Alegre, além dos catadore-as cooperados, as enchentes causaram danos aos meios de subsistência de cerca de 1,5 mil catadores, já que eles se concentravam nas áreas mais devastadas — as Ilhas e a Zona Norte.
Destacar os impactos de eventos extremos sobre os catadore-as é extremamente relevante no contexto da crescente emergência climática. Essas pessoas trabalhadoras na econômica informal que contribuem na mitigação de gases de efeito estufa (GEE) precisam ser contempladas por políticas públicas que maximizem o papel que o setor já oferece sem custo para as cidades e para a indústria. Como relatado por catadore-as a um painel sobre mudanças climáticas na Expocatador 2024, os impactos do desastre climático de meio de 2024 afetaram não somente as moradias, mas também seus espaços de trabalho, pois, com a enchente, a infraestrutura dos galpões de triagem foi danificada, dificultando o acesso. Tal fato, e a perda de equipamentos e materiais por conta da enchente, foi um impedimento crucial à realização do trabalho e à geração de renda.
Cidades despreparadas resultam em catadores praticamente sem ajuda
Uma catadora relatou, na Expocatador, como as moradias foram afetadas, com muitos catadores ficando desabrigados, e quão limitada foi a assistência da Prefeitura: “Eu também perdi a minha casa e até hoje eu não retornei para ela, (alguns) dias fico na cooperativa e (alguns) dias fico na casa da minha mãe e assim eu vou vivendo todos os dias. Fomos extremamente maltratados no abrigo público. Quando retornamos para a cooperativa, a gente viu tudo destruído pela enchente. A Prefeitura até esse exato momento não nos ajudou em nada”.
É importante destacar como os impactos das enchentes nos espaços de trabalho dos catadores prejudicam sua saúde e aumentam riscos relacionados a objetos perfurocortantes. Durante o período de chuvas intensas, papel e papelão se deterioram rapidamente. Uma vez que tais materiais amolecem, fragmentos de vidro ou outros objetos perfurocortantes ficam mais aderidos, impedindo que catadore-as possam percebê-los através do barulho ou tato fino. Os riscos à saúde aumentam por conta da proliferação de fungos e bactérias, e da putrefação de restos de alimentos, o que atrai pequenos roedores, seus predadores e insetos transmissores de doenças. Além de afetar a saúde dos trabalhadores, isso também os faz sofrer perdas econômicas drásticas. A inexistência de planos de contingência e estratégias sensíveis para enfrentamento da catástrofe climática no Rio Grande do Sul aumentou o nível de vulnerabilidade a que os catadore-as já estavam expostos. Não obstante a ausência de ações efetivas por parte do poder público municipal, os catadore-as responderam e mobilizaram suas redes de apoio, tendo sido organizadas quatro campanhas de solidariedade como forma de auxílio: duas em Porto Alegre, uma nacional e outra internacional. A tragédia no Rio Grande do Sul colocou no radar de forma evidente quão despreparadas as cidades brasileiras estão para enfrentar eventos climáticos extremos.
Planejamento e política urbanos devem incluir catadore-as
A adaptação das cidades às mudanças climáticas se apresenta como um dos grandes desafios do planejamento urbano no Brasil e no mundo. A cultura e a rotina de planejamento urbano ainda não incorporaram os desafios trazidos pelas mudanças climáticas nem as questões ligadas à agenda de justiça climática. Segundo o IPCC (2014), a adaptação à mudança do clima se relaciona ao processo de ajuste de sistemas naturais e humanos ao comportamento do clima no presente e no futuro. Em sistemas humanos, a adaptação procura reduzir e evitar danos potenciais e explorar oportunidades benéficas advindas de tal mudança; e em sistemas naturais, a intervenção humana busca apoiar o ajuste desses sistemas ao clima atual e futuro, e seus efeitos.
Dessa forma, é necessário enfatizar quão importante é a elaboração de planos de adaptação climática municipais que identifiquem as vulnerabilidades especificas de diferentes grupos, como os catadore-as. Além disso, políticas públicas devem ser especificamente elaboradas para aumentar a resiliência do/as catadore-as, que já contribuem para a mitigação de GEE com sua atividade. Essa é uma questão de justiça climática. Além disso, é crucial o envolvimento de catadore-as nas discussões e na coprodução de dados confiáveis sobre impactos de mudanças climáticas. Trata-se de algo que deve ser feito de forma sistemática e contínua, já que a produção de políticas públicas baseadas em evidências se torna cada vez mais importante.
Um apelo para que as cidades percebam que o aumento da resiliência de catadore-as impulsionará a todos
Ao completar 1 ano da tragédia, conclamamos que as gestões municipais devem compreender que, ao aumentar a resiliência climática dos catadore-as, as cidades estarão, em última instancia, aumentando a resiliência da cidade como um todo, afinal, como disse um catador participante da pesquisa realizada pela WIEGO em 2023, os catadores são os “doutores do meio ambiente”.