Essas questões foram tema de pesquisa publicada em 2023 pela rede de pesquisa, incidência e ação Mulheres no Trabalho Informal Globalizando e Organizando (WIEGO, em sua sigla em inglês), desenvolvida em parceria com a Universidade de Sheffield. Essa pesquisa foi uma resposta direta aos desejos de saber mais sobre mudanças climáticas, que emergiu de um processo de planejamento participativo do grupo de catadoras “As Bonitas do MNCR” (projeto facilitado pela WIEGO). Nessa pesquisa, 91% dos respondentes do levantamento nacional (‘survey’) apontaram que as mudanças climáticas já estavam afetando suas vidas e seu trabalho. Mal sabíamos, ao lançar a pesquisa, que a realidade da emergência climática ganharia contornos dramáticos com as enchentes de maio de 2024 no Rio Grande do Sul. Às vésperas do marco de 1 ano dessa tragédia, WIEGO e o MNCR refletem sobre o ocorrido a partir dos olhares dos catadore-as de recicláveis.
Esse desastre climático foi considerado o maior da história do estado, atingindo 478 municípios, e com um número de 2.398.255 pessoas afetadas e 183 óbitos confirmados (Faria, 2025). Como destacado por Faria (2025), os vastos impactos decorrentes deste evento climático, devem perdurar por longo prazo, provocando sofrimentos aos trabalhadores de vários setores e sobrecarregando estruturas e servidores públicos.
As mudanças climáticas têm contribuído para o aumento da frequência das inundações, que vêm se tornando cada vez mais intensas. Tal fenômeno se deve à sua associação aos eventos climáticos extremos e ao aumento dos níveis dos oceanos. As inundações fazem com que o risco de doenças transmitidas pela água contaminada aumente, devido à mistura de esgoto com água potável, ocasionando doenças diarreicas, Leptospirose, e lesões por traumas, além de perdas de vidas e materiais que afetam psicologicamente e economicamente o indivíduo. A negligência das administrações públicas em planejar para antecipar os impactos dos eventos extremos, desenvolvendo estratégias adaptativas que permitam aumentar a resiliência urbana, maximiza a forma como os cidadãos e, em especial, as populações em situação de vulnerabilidade são afetadas.
Os trabalhadores da economia informal também foram seriamente afetados, entre eles os catadore-as de recicláveis. Em balanço feito logo após a tragédia por um representante do Movimento Nacional de Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), seis das 13 cooperativas de Porto Alegre tinham sido completamente submersas, com 400 pessoas diretamente prejudicadas pela inundação. Já no município de Canoas, outras seis cooperativas foram inundadas e 140 trabalhadores foram diretamente atingidos. Em outra cidade, São Leopoldo, foram cinco unidades de reciclagem impactadas e 75 pessoas atingidas. Os espaços de trabalho dos catadore-as das cidades de Novo Hamburgo e Guaíba também foram atingidos e, em Porto Alegre, além dos catadore-as cooperados, cerca de 1,5 mil catadores de rua foram impactados, já que eles se concentravam nas áreas que foram mais alagadas — as Ilhas e a Zona Norte.
Colocar no radar os impactos de eventos extremos sobre os catadore-as é extremamente relevante no contexto da crescente emergência climática. Estes agentes ambientais que contribuem na mitigação de gases de efeito estufa (GEE) precisam ser contemplados por políticas públicas que maximizem o papel de agente climático que o setor já oferece sem custo para as cidades e para a indústria. Como relatado por catadore-as em um painel sobre mudanças climáticas na Expocatador 2024, os impactos desse desastre climático afetaram não somente as moradias, mas também seus espaços de trabalho, já que os galpões de triagem foram inundados ocasionando, assim, perda de equipamentos e materiais, dificuldade de acesso ao galpão, avarias na infraestrutura edilícia e dificuldade ou impedimento do trabalho e perda de renda.
Uma catadora relatou, na Expocatador, como as moradias foram afetadas, tendo muitos catadores ficado desabrigados, e quão limitada foi a assistência da Prefeitura: “Eu também perdi a minha casa e até hoje eu não retornei para ela, (alguns) dias fico na cooperativa e (alguns) dias fico na casa da minha mãe e assim eu vou vivendo todos os dias. (...) fomos extremamente maltratados no abrigo público. Quando retornamos para a cooperativa a gente viu tudo destruído pela enchente (...) a Prefeitura até esse exato momento não nos ajudou em nada”.
É importante destacar o quão disruptivos são os impactos de enchentes nos espaços de trabalho dos catadores e como isso afeta a saúde deles. Durante o período de chuvas intensas, a deterioração do material tipo papel e papelão é acelerada, e isso aumenta os riscos relativos à presença de materiais perfurocortantes. Uma vez que o material (papel e papelões) está mais amolecido, fragmentos de vidro ou perfurocortantes ficam mais aderidos, impedindo que os catadores possam percebê-los através do barulho ou tato fino. A proliferação de fungos e bactérias devido à putrefação de restos de alimentos e dejetos presentes no material, serve tanto para atrair pequenos roedores, como seus predadores e insetos transmissores de doenças, maximizando riscos à saúde. Todos esses elementos, além de afetar a saúde dos trabalhadores, provocam perdas econômicas drásticas a estes. A inexistência de planos de contingência e estratégias sensíveis para enfrentamento da catástrofe climática no Rio Grande do Sul, aumentou o nível de vulnerabilidade a que os catadore-as já estavam expostos. Não obstante, a ausência de ações efetivas do poder público municipal, os catadore-as reagiram e mobilizaram suas redes de apoio, tendo sido organizadas quatro campanhas de solidariedade como forma de auxílio: duas em Porto Alegre, uma nacional e outra internacional. A tragédia no Rio Grande do Sul colocou no radar de forma evidente o quão despreparadas as cidades brasileiras estão para enfrentar eventos climáticos extremos.
A adaptação das cidades às mudanças climáticas se apresenta como um dos grandes desafios do planejamento urbano no Brasil e no mundo. A cultura e a prática de planejamento urbano ainda não incorporaram os desafios trazidos pelas mudanças climáticas nem as questões ligadas à agenda de justiça climática. A adaptação à mudança do clima segundo o IPCC (2014), refere-se ao processo de ajuste de sistemas naturais e humanos ao comportamento do clima no presente e no futuro. Em sistemas humanos, a adaptação procura reduzir e evitar danos potenciais ou explorar oportunidades benéficas advindas de tal mudança. Em sistemas naturais, a intervenção humana busca apoiar o ajuste desses sistemas ao clima atual e futuro e seus efeitos.
Dessa forma, é preciso destacar a relevância da elaboração de planos de adaptação climática municipais e de que estes identifiquem as vulnerabilidades especificas nos territórios de distintos grupos, entre eles os catadore-as, bem como a importância da existência de políticas públicas especificamente desenhadas para aumentar a resiliência desses atores, que já contribuem na mitigação de GEE com sua atividade. Essa é uma questão de justiça climática. Por outro lado, torna-se importante ressaltar a importância de que catadore-as se engajem na discussão e na coprodução de dados confiáveis sobre impactos de mudanças climáticas, de forma sistemática e contínua, já que a produção de políticas públicas baseadas em evidências tende a tornar-se cada vez mais importante.
Ao completar 1 ano da tragédia, conclamamos que é preciso que as gestões municipais compreendam que, ao aumentar a resiliência climática dos catadore-as, as cidades estarão, em última instancia, aumentando a resiliência da cidade como um todo, afinal os catadores são os “doutores do meio ambiente”**.